Para começar a abordar este assunto extremamente importante vou comentar sobre um fato. Certa vez, no meu ambulatório de feridas e pé diabético, eu falei para um paciente que o diagnóstico dele era “pé diabético”. Ele prontamente respondeu: “que bom, doutor, eu ter vindo aqui consultar, fiquei entusiasmado com esta notícia!”.
Eu perguntei: “mas por quê?”. Ele respondeu: “doutor, eu pensava que eu tinha diabetes, mas saber que é só o meu pé me deixou muito, muito feliz!”. Lógico que foi um erro de interpretação por parte dele e a explicação da situação e das complicações veio na sequência da nossa conversa. Mas afinal de contas então, o que é pé diabético?
Pé diabético pode ser definido como um conjunto de alterações e complicações que podem ocorrer nos pés e pernas dos diabéticos, consequentes ao aumento e não controle dos níveis de açúcar no sangue (hiperglicemia).
Entre as alterações e complicações estão o comprometimento dos vasos sanguíneos ocasionando a falta de irrigação de sangue que leva oxigênio às células (isquemia) comprometendo os nervos. Isso pode ter como consequência a médio e longo prazo a perda da sensibilidade (neuropatia) e ao aparecimento de deformidades na anatomia dos pés, favorecendo a ocorrência de feridas ou ulcerações e que podem evoluir com uma infecção.
Sintomas e detalhes
A falta de sensibilidade nos pés pode fazer com que pequenos traumas passem desapercebidos, como o corte errado das unhas, traumas diretos nos dedos dos pés pelo uso de calçados contraindicados (como chinelos de dedo), abrindo as portas para a entrada de microrganismos e para a infecção.
Temos problemas vasculares, neurológicos, ortopédicos e infecciosos envolvidos. Podemos tirar a conclusão da complexidade que envolve o tratamento dessa complicação. As estatísticas demonstram que cerca de 25% dos diabéticos desenvolvem ao longo da vida problemas nos pés pela neuropatia (levando à perda da sensibilidade), feridas, ulcerações e infecções. Destes, 20% poderão evoluir com algum tipo de amputação.
Mas nem todos os pacientes com diabetes correm risco de ulceração. Os principais fatores de risco incluem: perda da sensibilidade (aumento dos riscos de traumas por perda da proteção), os problemas vasculares pela falta de irrigação sanguínea e as deformidades do pé. Se prestarmos a devida atenção, tudo isso são consequências.
Mas e a causa?
Já a raiz do problema está na hiperglicemia e os efeitos deletérios no aumento dos níveis de açúcar na corrente sanguínea. Então o primeiro passo, e o mais importante de tudo, é controlar os níveis de açúcar, isto é, controlar a glicemia.
Portanto, a abordagem de um pé diabético não pode ser desvinculada da pessoa diabética. O tratamento requer uma visão holística, isto é, do todo, pois muitos diabéticos também são fumantes (infelizmente), hipertensos, sedentários, obesos, dislipidêmicos, com insuficiência vascular nos membros inferiores, desnutridos, com falhas graves na alimentação e hidratação e, principalmente, no controle dos níveis de açúcar no sangue. Esses fatores são decisivos para os resultados desde a abordagem até o tratamento do diabético com problemas nos pés.
Realizar o gerenciamento intensivo do controle metabólico está entre as prioridades para a prevenção de complicações e para o tratamento. Isso inclui melhorar os níveis de glicemia, da hidratação e tratar a desnutrição se esta estiver presente.
Práticas saudáveis
Inicialmente, ressalta-se a importância de que todos os diabéticos estejam sob acompanhamento médico associado aos cuidados de enfermagem e nutricionais. São esses profissionais que saberão orientar sobre os tratamentos, a alimentação, hidratação, monitoramento e controle dos níveis de açúcar no sangue; solicitar exames e sugerir exercícios físicos buscando uma melhor qualidade de vida.
Entre as práticas saudáveis recomendadas para colaborar no controle da glicemia (evitando a hiperglicemia) e reduzir os riscos associados ao diabetes estão: o controle do peso (evitar o sobrepeso e a obesidade), parar imediatamente com o tabagismo, evitar o sedentarismo, ter uma dieta saudável e evitar a ingesta inadvertida de bebida alcoólica. Cabe lembrar que o excesso de peso é o fator mais fortemente ligado ao risco de diabetes.
Desde que não haja restrições, a dieta deve ser rica em fibras, vitaminas e sais minerais, com uma quantidade suficiente de proteínas e uma quantia adequada de hidratos de carbono. A ingestão de gorduras trans deve ser evitada para reduzir os riscos vasculares. Ingerir, preferencialmente e sempre com moderação, frutas que tenham baixo índice glicêmico, como maçã, pera, morango, maracujá, limão e kiwi. Cuidados devem ser tomados com a ingesta de frutas ou sucos de frutas com alto índice glicêmico, como banana, melancia, manga, mamão, melão, caqui, goiaba, ameixa preta e as frutas secas.
Todos, diabéticos ou não, devem hidratar-se adequadamente e conforme as orientações, principalmente em dias quentes (mas não se esquecer de se hidratar também nos dias frios). É preciso também ter cuidado especial na colocação de sal na comida e dar preferência ao uso de ervas para temperar os alimentos em substituição ao sal.
Controlar é a chave
Por fim, ressalto que manter a glicemia controlada é fundamental e um fator diferencial na vida do diabético. Tanto a hiperglicemia (aumento) como a hipoglicemia (queda dos níveis de açúcar no sangue) causam uma série de danos às nossas células e podem colocar os diabéticos em risco.
A glicemia controlada contribui na redução das complicações agudas e crônicas, como a perda da sensibilidade nos pés. E, reconhecidamente, 85% dos problemas decorrentes do pé diabético são passíveis de prevenção a partir de cuidados especializados e do controle glicêmico.
E o alerta para quem tem muita sede, muita fome e urina muito: procure atendimento médico o quanto antes.
*Adriano Mehl (CRMPR 12959 | RQE 6088 e CREMESP 197183 | RQE 72782) é médico responsável pelos Núcleos de Pesquisa, Prevenção e Tratamento de Feridas e Pé Diabético em Curitiba/PR e na MEDMandic em Campinas/SP. Diretor Presidente do Núcleo de Apoio em Educação Médica Continuada | WCTG Wound Care Training Group – Brasil. Membro da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), da Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral (BRASPEN) e do Grupo Latinoamericano de Investigación en Pie Diabético (GLIPID). Professor Coordenador e Preceptor do Curso de Imersão e do Programa de Gerenciamento e Tratamento de Feridas na Faculdade São Leopoldo Mandic em Campinas/SP. Professor Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Tratamento Avançado e Prevenção de Lesões Cutâneas da Faculdade Santa Casa de Belo Horizonte/MG.