Complementariedade entre Nutrição Parenteral e Nutrição enteral: Por que, Como e Quando?

Postado em 21 de julho de 2014

Na prática clínica são utilizadas a existência da desnutrição, do risco de seu desenvolvimento e fórmulas orientadas a partir do peso do paciente para indicar a necessidade e a quantidade da terapia nutricional (TN) a ser oferecida ao paciente, o mais precocemente possível e, preferencialmente, pela via enteral (1).

Dessa maneira, analisando o impacto do estado nutricional na evolução clínica da população hospitalar em geral, fica evidente que pacientes previamente desnutridos ou que desnutrem ao longo da permanência hospitalar têm piores resultados. Porém em pacientes graves, as ferramentas tradicionais utilizadas para obter o reconhecimento, quantificação e acompanhamento da desnutrição, bem como as fórmulas disponíveis para estimativas das necessidades nutricionais têm baixa precisão (2).

A estimativa da correta quantidade de energia e proteína ao paciente grave tem sido motivo de controvérsias. Alguns trabalhos observacionais demonstram impacto negativo do déficit calórico cumulativo nos resultados clínicos no tratamento desses pacientes. Por outro lado, em pacientes graves sob ventilação mecânica, a oferta de dois terços das necessidades calóricas parece associar-se a melhor resultado que a oferta do total calculado (3-5).

Assim, tendo como hipótese a ideia de que o estado nutricional prévio a doença grave seria determinante do impacto da quantidade de energia e proteína oferecida aos pacientes, um grupo canadense observou uma coorte com mais de 2.800 pacientes graves (ventilação mecânica nas primeiras 48 horas de internação e permanência mínima de 3 dias) em mais de 150 centros de 37 países por um período de até 60 dias, sendo acompanhados dados clínicos, antropometria e parâmetros da TN. Foi encontrada uma redução absoluta da mortalidade em 60 dias em 24% a cada acréscimo de 1.000 kcal na oferta diária de energia, sendo esse fenômeno mais evidente nos extremos de índice de massa corpórea (IMC): abaixo de 20 e acima de 40 Kg/m2 (3).

Em termos de via de administração, a oferta enteral de nutrientes é mais fisiológica e considerada mais segura que a oferta parenteral, entretanto, sua eficiência em atingir as metas proteico calóricas é menor. Ao medir o consumo energético de pacientes graves através da calorimetria indireta e compara-lo com a efetiva oferta enteral de calorias, observa-se que somente após 5 a 7 dias o equilíbrio é obtido, gerando um “déficit calórico” que pode chegar a milhares de calorias. Quando o déficit acumulado na primeira semana chega próximo a 10 mil kcal complicações infecciosas ocorrem em maior frequência (5).

A TN mista, enteral e parenteral, aparece como recurso terapêutico para evitar o déficit calórico e suas complicações, porém, trás o risco de hiperalimentação, que promove disfunção hepática, infecções e aumento do tempo de ventilação mecânica. Parte das complicações secundárias à hiperalimentação são atribuídas a hiperglicemia, geralmente associada a oferta parenteral de nutrientes, que promoveria um estado inflamatório adicional, aumentando o catabolismo proteico e mascarando o benefício do aumento da oferta calórica (6).

Como o estabelecimento do déficit calórico ocorre com maior intensidade nos primeiros dias de internação, quando as dificuldades em estabelecer a adequada oferta pela via enteral são maiores a suplementação pela via parenteral deveria ser instituída precocemente, de maneira semelhante às recomendações para o suporte nutricional enteral, porém o tempo de início recomendado para o suporte parenteral não é consenso entre as principais sociedades médicas (1, 2).

Em 2011, um estudo belga com mais de 4.500 pacientes internados em unidade de terapia intensiva (UTI) com risco nutricional identificado (NRS ≥ 3) comparou as estratégias de administrar precocemente (em até 72 horas) a oferta calórica prevista, complementando a oferta enteral com parenteral, com a complementação tardia da nutrição parenteral (após uma semana). O grupo controle (suplementação tardia) evoluiu com menos complicações (novas infecções), menor permanência na UTI e hospitalar (1 e 2 dias, respectivamente) e menor utilização de suporte à disfunção orgânica (ventilação mecânica e terapia renal substitutiva). Não foi observada diferença na mortalidade após 90 dias entre os grupos (7). Esse trabalho recebeu várias críticas ao seu desenho, mas é possível compreender que o uso da oferta calórica precoce associando nutrição enteral e parenteral pode não trazer benefícios ao paciente.

Ainda em 2011, um grupo israelense estudou o impacto da oferta calórica guiada por calorimetria (28 kcal/kg/dia) em 130 pacientes internados na UTI por mais de 72 horas sob ventilação mecânica quando comparada com a oferta de 25 kcal/kg/dia (8). O resultado demonstrou uma tendência (p=0,0058) na redução da mortalidade hospitalar e um aumento nos tempos de ventilação mecânica e internação na UTI no grupo que recebeu mais calorias orientadas pela calorimetria. Apesar dos resultados não empolgarem, a oferta calórica guiada por calorimetria aumentou a oferta calórica no grupo tratado sem elevar significativamente a glicemia média (127 vs. 119 mg%) quando comparada ao grupo controle, sugerindo que a prevenção do desenvolvimento do déficit calórico poderia ser feita com baixo risco de complicações metabólicas quando monitorizada por calorimetria.

No final de 2012, um trabalho suíço com 300 pacientes em UTI geral utilizou como critério de inclusão a falha da progressão do suporte nutricional enteral em atingir 60% das necessidades calóricas estimadas (25 a 30 kcal/kg peso ideal/dia), em 3 dias, e comparou o impacto da progressão gradual da oferta enteral com a suplementação parenteral a partir desse momento na evolução clínica dos pacientes. O grupo suplementado a partir do 4o dia evoluiu com menos complicações infecciosas de todos os tipos entre o 9o e 28o dias. Mortalidade, permanência na UTI e hospitalar e tempo de ventilação mecânica, além de necessidade de terapia renal substitutiva não foram diferentes entre os grupos. Quando observada as complicações relacionadas a oferta parenteral de calorias, não foram encontradas diferenças na glicemia, necessidade de insulina, distúrbios hidro-eletrolíticos e alteração da função hepática entre os grupos (9).

A comparação entre os estudos israelense (8) e suíço (9) permite-nos algumas considerações. O IMC dos pacientes incluídos no trabalho suíço estavam mais próximos da faixa em que poderia haver benefício do aumento da oferta calórica (25 vs. 28 Kg/m2). Além disso, a diferença entre a oferta protéica entre os grupos (1,5 vs. 0,8 e 0,95 vs. 0,67) poderiam explicar as diferenças observadas na morbidade, infecções, tempo de ventilação mecânica e permanência na UTI e hospitalar.

A procura por subgrupos de pacientes beneficiados pela suplementação parenteral precoce, aqueles que desenvolviam doenças onde a desnutrição determinava a evolução clínica, como o câncer gastrintestinal (10) e doença de Chron (11), os resultados com a suplementação precoce foram favoráveis. Porém, nas situações clínicas em que havia um potencial benefício do controle do déficit calórico, devido ao catabolismo associado, como trauma de crânio, essa suplementação precoce não trouxe benefícios aos pacientes (12).

Existem informações suficientes para acreditar que a prática da complementariedade da NE por NP é segura, quando são tomados os cuidados em evitar a hiperalimentação e hiperglicemia. A possibilidade de monitorização com calorimetria indireta aumenta a possibilidade de acerto. Também se pode afirmar que o déficit calórico pode ser reduzido e até evitado com esta prática
. O que ainda não se pode incentivar é seu uso indiscriminado. Além disso, é preciso definir qual componente seria mais importante para o resultado: oferta calórica, protéica ou ambas?

A utilização da complementariedade poderia ser utilizada, com parcimônia, nos pacientes com evidência de benefício: extremos de IMC e em tratamento para doenças graves do tubo digestório com desnutrição associada. Porém, para outras situações, novos estudos deverão ser realizados para demonstrarem benefícios.

André Luiz Baptiston Nunes
Prof. Titular da Disciplina de Semiologia da Faculdade de Medicina São Camilo, Especialista em Clínica Médica, Terapia Intensiva e Nutrição Parenteral e Enteral

Referências:

1. Kreymann KG, Berger MM, Deutz NE, et al. ESPEN Guidelines on Enteral Nutrition: Intensive care. Clin Nutr. 2006; 25: 210-23.

2. McClave SA, Martindale RG, Vanek VW, et al. Guidelines for the Provision and Assessment of Nutrition Support Therapy in the Adult Critically Ill Patient: Society of Critical Care Medicine (SCCM) and American Society for Parenteral and Enteral Nutrition (A.S.P.E.N.). JPEN Journal of parenteral and enteral nutrition. 2009; 33: 277-316.

3. Alberda C, Gramlich L, Jones N, et al. The relationship between nutritional intake and clinical outcomes in critically ill patients: results of an international multicenter observational study. Intensive care medicine. 2009; 35: 1728-37.

4. Arabi YM, Tamim HM, Dhar GS, et al. Permissive underfeeding and intensive insulin therapy in critically ill patients: a randomized controlled trial. The American journal of clinical nutrition. 2011; 93: 569-77.

5. Villet S, Chiolero RL, Bollmann MD, et al. Negative impact of hypocaloric feeding and energy balance on clinical outcome in ICU patients. Clin Nutr. 2005; 24: 502-9.

6. Berger MM. The 2013 Arvid Wretlind lecture: Evolving concepts in parenteral nutrition. Clin Nutr. 2014.

7. Casaer MP, Mesotten D, Hermans G, et al. Early versus late parenteral nutrition in critically ill adults. The New England journal of medicine. 2011; 365: 506-17.

8. Singer P, Anbar R, Cohen J, et al. The tight calorie control study (TICACOS): a prospective, randomized, controlled pilot study of nutritional support in critically ill patients. Intensive care medicine. 2011; 37: 601-9.

9. Heidegger CP, Berger MM, Graf S, et al. Optimisation of energy provision with supplemental parenteral nutrition in critically ill patients: a randomised controlled clinical trial. Lancet. 2013; 381: 385-93.

10. Zhu XH, Wu YF, Qiu YD, Jiang CP and Ding YT. Effect of early enteral combined with parenteral nutrition in patients undergoing pancreaticoduodenectomy. World journal of gastroenterology : WJG. 2013; 19: 5889-96.

11. Jacobson S. Early postoperative complications in patients with Crohn’s disease given and not given preoperative total parenteral nutrition. Scandinavian journal of gastroenterology. 2012; 47: 170-7.

12. Justo Meirelles CM and de Aguilar-Nascimento JE. Enteral or parenteral nutrition in traumatic brain injury: a prospective randomised trial. Nutricion hospitalaria : organo oficial de la Sociedad Espanola de Nutricion Parenteral y Enteral. 2011; 26: 1120-4.

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