Síndrome do Intestino Irritável: condução de caso clínico

Postado em 27 de novembro de 2024

Acompanhe a condução de um caso clínico de Síndrome do Intestino Irritável, incluindo manejo e estratégias não medicamentosas para melhorar a qualidade de vida do paciente.

Síndrome do Intestino Irritável

Fonte: Canva

A síndrome do intestino irritável (SII) é um distúrbio funcional que pode afetar até 22% da população geral. De acordo com os critérios de Roma IV, a SII é caracterizada por dor abdominal recorrente e distensão abdominal associada a alterações nos hábitos intestinais, na ausência de doença orgânica ou anormalidades bioquímicas.

A síndrome do intestino irritável pós-infecciosa (SII-PI) é um tipo particular de SII, com início dos sintomas após um episódio agudo de gastroenterite infecciosa, devido a infecção por bactérias, protozoários ou vírus. Nesse sentido, a SII-PI é mais prevalente após infecções bacterianas, sendo as bactérias mais comuns Campylobacter, Shigella, E. coli e Salmonella.

Estima-se que a prevalência da SII-PI seja de 11,5% dos pacientes infectados. Assim, ocorre a persistência de sintomas como diarreia e desconforto abdominal, mesmo após a infecção causadora. As características clínicas da SII geralmente se desenvolvem de 6 a 18 meses após o episódio de gastroenterite infecciosa.

No artigo de hoje, iremos conduzir um caso clínico que ilustra as nuances da Síndrome do Intestino Irritável (SII), abordando desde os sintomas iniciais até o manejo da condição. Confira a seguir!

Caso clínico

Paciente, 34 anos, refere que – há mais ou menos 40 dias – teve quadro súbito de dor abdominal difusa, tipo cólica, acompanhada de diarreia, 6 a 8 evacuações líquidas, sem sangue, muco ou pus, com tenesmo e sensação de evacuação incompleta. Nega febre, refere alguma náusea, sem vômitos.

Foi ao Pronto Socorro (PS) onde foi hidratada, recebeu antiespasmódicos com melhora parcial e teve alta após algumas horas de observação, com orientações sobre hidratação e uso de antiespasmódico, se necessário.

O quadro evoluiu favoravelmente, até cerca de 20 dias, quando iniciou quadro de dor abdominal, associada a distensão abdominal e episódios isolados de diarreia pastosa, sem sangue, muco ou restos alimentares. Comenta que o quadro doloroso é quase que diário com momentos de maior intensidade e, a distensão que, ao longo do dia, se intensifica, incomoda muito a paciente: “parece que estou grávida; e minha barriga, além de doer, faz muito barulho”.

Ao exame clínico estava em bom estado geral, com desconforto à palpação abdominal, principalmente em mesogástrio e flanco esquerdo, ruídos aéreos aumentados e nítida distensão abdominal, sem outros comemorativos.

Em sua história pregressa, refere que já foi diagnosticada com SII, por apresentar quadros frequentes de dor abdominal e distensão, principalmente após estresse e ingestão de alguns tipos de alimentos, tanto que foi orientada a retirar o glúten da dieta, sem muita melhora.

Já fez uso de várias medicações para o intestino que não sabe referir, pois não as utiliza mais, ou porque “nada adiantou” e “o médico não explica muita coisa sobre meu problema”. Quando tem dor toma butilbrometo de escopolamina e tentava controlar a distensão com dieta, sem maiores resultados. Acrescenta que “o que estou sentido atualmente é muito pior do que sentia”.

Nega história familiar de câncer do aparelho digestivo e faz uso de medicação ansiolítica e antidepressiva há alguns anos, para tratamento de distúrbio de ansiedade e depressão.

Inicialmente, a paciente foi orientada a trocar o antiespasmódico para otilônio, 1 comprimido antes do almoço e outro antes do jantar. Quando solicitados, os exames de rotina vieram todos sem alterações, entre eles:

  • Hemograma;
  • Proteína C-reativa;
  • Velocidade de hemossedimentação;
  • Sorologia para Doença Celíaca;
  • Ferro e magnésio;
  • Teste respiratório para supercrescimento bacteriano e ultrassom de abdômen.

No retorno, os exames estavam todos normais, exceto o teste respiratório que confirmou o supercrescimento bacteriano. A paciente referiu melhora do quadro de dor e menos diarreia, embora ainda persistisse a distensão abdominal “que me deixa extremamente irritada e desesperançosa com isso”.

O exame físico mostrava melhor tolerância à palpação, e distensão abdominal com ruídos aumentados. Assim, foi iniciado esquema antibiótico com metronidazol 250 mg 6/6 horas por 14 dias. Retorno em 30 dias.

A paciente não retornou na data prevista, porque estava melhor, vindo a retornar após 6 meses com recidiva do quadro. Exame físico inalterado.

Teste seus conhecimentos

 

#1. Qual é o diagnóstico provável considerando os sintomas e o histórico da paciente?

Justificativa:  A paciente apresenta dor abdominal recorrente, distensão abdominal e episódios de diarreia, que começaram após um episódio agudo de gastroenterite infecciosa, o que é característico da SII-PI. Além disso, a confirmação do supercrescimento bacteriano no teste respiratório sugere um desequilíbrio na microbiota intestinal, o que é uma característica comum na SII-PI. A ausência de alterações significativas em exames como hemograma, proteína C-reativa e outros exames laboratoriais (que poderiam sugerir uma doença inflamatória ou outra condição), juntamente com a resposta parcial ao tratamento antibiótico, também indica que a paciente tem SII-PI.

#2. Qual dessas características apresentadas pela paciente NÃO se configura como um fator de risco para o quadro de SII-PI?

Justificativa: Vários fatores psicológicos demonstraram afetar o risco de desenvolver SII-PI, incluindo ansiedade e depressão. Por exemplo, um estudo observou que cada aumento do desvio padrão na pontuação de depressão aumentou o risco de desenvolver SII=PI em 3,2 vezes. Além disso, grande parte das pesquisas apontam que as mulheres têm maior risco de SII-PI do que os homens. Finalmente, embora a idade não seja um fator de risco tão forte quanto fatores psicológicos e sexo, a idade acima de 60 anos é considerada protetora contra o desenvolvimento de SII-PI, embora isso possa estar relacionado à imunidade devido à exposição anterior.

#3. Considerando o diagnóstico de SII-PI, qual seria uma recomendação de manejo não medicamentoso útil para a paciente?

Justificativa: A dieta de baixo FODMAPs (Fermentable Oligosaccharides, Disaccharides, Monosaccharides, and Polyols) tem mostrado eficácia no manejo de sintomas de SII, incluindo a SII-PI. FODMAPs são carboidratos de cadeia curta que podem ser mal absorvidos no intestino, causando fermentação e produção de gases, o que pode agravar sintomas como dor abdominal, distensão e diarreia. Ao reduzir os alimentos ricos em FODMAPs, muitos pacientes experimentam uma melhora significativa nos sintomas. No caso clínico, a dieta baixa em FODMAPs se apresenta como uma dieta não tão restrita, obedecendo às intolerâncias referidas pela paciente.

#4. Além da terapia farmacológica e dietética, qual destas suplementações seria estratégia auxiliar na melhora da saúde intestinal da paciente?

No contexto da SII-PI, os probióticos podem ajudar a restaurar o equilíbrio da microbiota intestinal, especialmente após um episódio de infecção gastrointestinal. A eficácia e a segurança de produtos probióticos para o tratamento da Síndrome do Intestino Irritável (SII) são apoiadas por um número crescente de estudos clínicos, sendo lactobacilos e bifidobactérias frequentemente usados em produtos probióticos No caso clínico em questão, houve a reintrodução de otilônico com associação de probióticos (Lactobacillus helveticus e Bifidobacterium longum), ambos por 90 dias, no café da manhã e no jantar. No retorno, a paciente referiu melhora significativa do quadro da dor e principalmente da distensão. Assim, foi orientada a suspender o otilônio e manter o probiótico 1 vez ao dia. Em novo retorno após 90 dias, a paciente referiu estar muito bem, e inclusive diminuiu a necessidade da medicação psiquiátrica que utilizava.

Finalizar

 

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