Nos últimos anos, a intolerância à lactose (IL) tem assumido um papel significativo nos consultórios de profissionais de saúde, incluindo médicos generalistas, gastroenterologistas e nutrólogos.
Essa condição clínica surge devido à redução na atividade da lactase (Beta D galactosidase) na borda em escova do intestino delgado. A lactase desempenha um papel crucial na hidrólise da lactose, o dissacarídeo presente no leite dos mamíferos, convertendo-o em galactose e glicose para facilitar a absorção desses açúcares pelas células intestinais.
O desenvolvimento da atividade da lactase começa por volta da oitava semana de gestação, atingindo seu ápice no momento do nascimento. Contudo, nos primeiros meses de vida, a expressão da lactase começa a declinar na maioria dos indivíduos, caracterizando a não persistência dessa enzima. Estudos indicam que aproximadamente 70% ou mais da população mundial entre 20 e 40 anos pode apresentar deficiência de lactase.
Sabe-se que a prevalência da lactase está intimamente relacionada à etnia, com taxas extremamente baixas nos países do Norte da Europa e elevadas na América do Sul, África, Ásia e Austrália. É notável que em regiões com uma forte tradição na criação de gado leiteiro, houve um aumento na persistência da lactase.
E já que estamos numa região mais propensa ao surgimento da intolerância à lactose (IL), trazemos para você um caso clínico em que a condição é diagnosticada e tratada. Teste seus conhecimentos sobre o assunto e veja o que fazer caso receba no consultório um paciente com as características da doença.
Caso Clínico
Paciente de 19 anos, solteira, sem filhos, cursando o segundo ano da faculdade e residindo com os pais. Há cerca de quatro anos, iniciou com episódios de náuseas intermitentes, sem pirose, regurgitação, dor abdominal ou diarreia.
Ficou sintomática por algum tempo, até procurar atendimento médico após apresentar episódio de diarreia aquosa, sem sangue, muco ou pus, já resolvido antes da primeira consulta. No entanto, os pais da paciente perceberam que ela voltara a apresentar queixas gastrointestinais. Paciente justificava os sintomas em decorrência de abusos alimentares com maior quantidade de laticínios, quando comia pizza e tomava cerveja com amigos.
Na rotina, as evacuações são diárias, com formato variado, de acordo com a quantidade de laticínios ingerida (Bristol 3/4 se em dieta regular ou 5/6 se abusou de laticínios). Não tem muitos gases nem odor fétido. Não tem muitas cólicas.
Faz quatro refeições ao dia e sempre almoça na faculdade. Em casa, usa alimentos sem lactose; procura comer 1 ou 2 ovos ao dia; consome castanhas; come carne, mas sua ingesta proteica está reduzida. Comia mais saladas quando almoçava em casa. Come 2 ou 3 frutas ao dia. Ingere cerca de 1 a 1,5 litro de água por dia.
Pratica atividade física regular em academia 3 vezes por semana (musculação) e, às vezes, faz uso de Whey Protein concentrado ou barrinhas de proteína.
Exame físico:
– Eutrófica, corada, hidratada, com cabelos normoimplantados, eupneica, eucárdica, normotensa;
– Longilínea IMC 19,1 (peso 48,8 kg);
– Abdome algo distendido, mas sem queixas gastrointestinais à consulta.
– Por impedância, tem 20,6% de gordura corporal e 44,9% de massa muscular esquelética.
Agora, teste seus conhecimento e descubra como esse caso clínico foi conduzido.
#1. Qual é a hipótese diagnóstica principal para o quadro clínico da paciente?
Justificativa:
A hipótese diagnóstica principal para o quadro clínico da paciente é Intolerância à Lactose (IL), conforme indicado pelos sintomas gastrointestinais recorrentes após a ingestão de laticínios. A IL é resultante do declínio na atividade da lactase (Beta D galactosidase) na borda em escova do intestino delgado. A lactase é a enzima responsável pela hidrólise da lactose (dissacarídeo componente do leite dos mamíferos), em galactose e glicose, a fim de permitir a absorção desse açúcar pelas células intestinais. Quando não digerida, a lactose passa a ter um efeito osmótico no intestino delgado, acelerando o transito intestinal e aumentando sua fermentação pela microbiota do intestino grosso, o que resulta em formação de ácidos graxos de cadeia curta, hidrogênio e dióxido de carbono, responsáveis pelos sintomas gastrointestinais.
Referências:
Chengolova Z, Ivanova R, Gabrovska K. Lactose Intolerance – Single Nucleotide Polymorphisms and Treatment. J Am Nutr Assoc. 2023 Aug 28:1-8.
Savaiano DA, Boushey CJ, McCabe GP. Lactose intolerance symptoms assessed by meta-analysis: a grain of truth that leads to exaggeration. J Nutr. 2006 Apr;136(4):1107-13.
#2. Qual é o método diagnóstico comumente utilizado para confirmar a intolerância à lactose?
Justificativa:
O método diagnóstico comumente utilizado para confirmar a intolerância à lactose é o teste oral de tolerância à lactose, que consiste em coletas sequenciais de glicemias séricas (30, 60 e 120 minutos) a partir da glicemia basal em jejum seguida da ingestão de 50 g de lactose. O teste é considerado positivo quando os níveis glicêmicos seriados não apresentam elevação de 20 mg/dL do basal. A paciente realizou esse teste e o resultado foi positivo.
Uma outra opção de diagnóstico, menos usada no Brasil, seria o teste de hidrogênio respiratório. Esse teste consiste em realizar jejum de 8 a 10 horas antes da administração de 50 g de lactose e coletar o ar expirado a cada 30 minutos por 3 horas, para determinar as concentrações de hidrogênio expirado. O teste é positivo quando há aumento de 20 partes por milhão de hidrogênio expirado acima da concentração basal. Isso sugere uma deficiência de lactase.
Referências
Deng Y, Misselwitz B, Dai N, Fox M. Lactose Intolerance in Adults: Biological Mechanism and Dietary Management. Nutrients. 2015 Sep 18;7(9):8020-35.
Hermans MM, Brummer RJ, Ruijgers AM, Stockbrügger RW. The relationship between lactose tolerance test results and symptoms of lactose intolerance. Am J Gastroenterol. 1997 Jun;92(6):981-4.
#3. Qual é uma estratégia comum no tratamento da intolerância à lactose?
Justificativa:
Uma estratégia comum no tratamento da intolerância à lactose é a exclusão completa de alimentos contendo lactose, o que foi recomendado a paciente, incluindo a orientação para que substitua o whey protein concentrado por um isolado. No entanto, a suspensão do consumo de leite e derivados, principais fontes de lactose, pode acarretar carências nutricionais prejudiciais para a saúde e deve ser analisada com critério. O leite constitui uma importante fonte de proteínas de alto poder biológico (aminoácidos essenciais e não essenciais), de cálcio, magnésio, potássio, vitaminas do complexo B e outros oligoelementos, além de ser uma importante fonte de energia. Devemos considerar, também, que dietas restritivas, com as de exclusão de lactose, podem ter impacto negativo também em refeições realizadas com familiares e amigos. Por isso, outras alternativas devem ser consideradas.
Referência:
Di Costanzo M, Berni Canani R. Lactose Intolerance: Common Misunderstandings. Ann Nutr Metab. 2018;73 Suppl 4:30-37.
Wanes D, Husein DM, Naim HY. Congenital Lactase Deficiency: Mutations, Functional and Biochemical Implications, and Future Perspectives. Nutrients. 2019 Feb 22;11(2):461.
#4. Qual é a abordagem terapêutica complementar mais apropriada para a paciente em relação à intolerância à lactose, considerando o tratamento dietético e a possibilidade de consumo de alimentos com lactose?
Justificativa:
A abordagem terapêutica mais apropriada para a paciente é o uso regular de suplemento de lactase 10.000 FCC, que auxilia na digestão da lactose. Ao suplementar com lactase, especialmente antes de consumir alimentos ou bebidas que contenham lactose, indivíduos intolerantes podem melhorar a capacidade de digerir esse açúcar presente em produtos lácteos, reduzindo ou prevenindo sintomas como náuseas, cólicas, diarreia e distensão abdominal associados à intolerância à lactose. É importante destacar que a suplementação de lactase não trata a causa subjacente da intolerância à lactose, mas oferece uma solução eficaz para lidar com os sintomas, permitindo que as pessoas intolerantes consumam laticínios de forma mais confortável. O uso adequado da suplementação deve ser orientado por um profissional de saúde, levando em consideração a intensidade da intolerância e a quantidade de lactose na dieta.
Referências:
Misselwitz B, Butter M, Verbeke K, Fox MR. Update on lactose malabsorption and intolerance: pathogenesis, diagnosis and clinical management. Gut. 2019 Nov;68(11):2080-2091.
Szilagyi A, Ishayek N. Lactose Intolerance, Dairy Avoidance, and Treatment Options. Nutrients. 2018 Dec 15;10(12):1994.
Referências:
Chengolova Z, Ivanova R, Gabrovska K. Lactose Intolerance – Single Nucleotide Polymorphisms and Treatment. J Am Nutr Assoc. 2023 Aug 28:1-8.
Corgneau M, Scher J, Ritie-Pertusa L, et al. Recent advances on lactose intolerance: tolerance thresholds and currently available answers. Crit Rev Food Sci Nutr. 2017;57(15):3344-56.
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