É crescente e cada vez mais proeminente o escopo de evidências sobre a relação de prevenção entre dieta vegetariana e câncer. O efeito protetor que as dietas vegetarianas têm em relação ao câncer, doenças cardiovasculares e metabólicas é relatado em diversos estudos.
Nas últimas décadas, pesquisas demonstraram que alimentos de origem vegetal conferem proteção contra o câncer, enquanto o consumo de alimentos de origem animal promove o inverso. Além dos próprios componentes presentes nas plantas, parte da explicação se deve ao fato de que para que os vegetais possam representar uma proporção maior nas refeições, a redução dos produtos de origem animal deve acontecer simultaneamente.
Vegetais e câncer, explicando a relação
Entenda os efeitos anticancerígenos dos vegetais e os principais fatores que explicam essa relação inversa entre dieta vegetariana e câncer:
Fibras
A fibra exerce diversos efeitos no trato gastrointestinal. No câncer de cólon e reto, por exemplo, elas promovem a aceleração do trânsito intestinal, reduzindo o contato direto entre os agentes carcinogênicos fecais com a mucosa intestinal.
O aumento do bolo fecal também leva à diluição dos agentes carcinogênicos. Além disso, as fibras têm a capacidade de absorver os sais biliares, considerados agentes favoráveis ao surgimento e desenvolvimento do câncer colorretal.
A fermentação das fibras alimentares por ação bacteriana pode gerar ácidos graxos de cadeia curta, os quais diminuem o pH do meio, reduzindo a conversão de ácidos biliares, criando um ambiente menos propício para o desenvolvimento da neoplasia. Isso se dá também pelas fibras terem um modulador da glicemia e insulina, pois o consumo elevado de produtos refinados está associado ao aumento do risco deste tipo de câncer.
Mudanças da microbiota intestinal
A maioria dos estudos indica que o consumo de proteínas animais e vegetais trazem influências diferentes no perfil de bactérias da microbiota intestinal. Indivíduos que consomem quantidade elevada de carne (que contém quantidade elevada de gordura) mostram menos abundância de bactérias, como Roseburia, Eubacterium retale e Ruminococcus bromii, pois elas metabolizam polissacarídeos.
As populações bacterianas que aumentam em resposta ao maior consumo de carne são tolerantes à bile, como Bacteroides e Clostridia, e, ao aumentar a proteína e a gordura da dieta, automaticamente se reduz o carboidrato e a resposta inflamatória aumenta, assim como o risco de câncer colorretal.
Fitoquímicos
Um estudo analisou o total de antioxidantes de mais de 3.100 alimentos, bebidas, especiarias, ervas e suplementos usados no mundo. A média do teor antioxidante de alimentos de origem animal foi de 0,18 mmol/100g e, nos alimentos vegetais, de 11,57 mmol/100g.
Em outras palavras, há 64,27 vezes mais antioxidantes no reino vegetal do que no animal na mesma unidade de peso. Mais de uma dezena de estudos mais antigos mostraram que vegetarianos apresentam níveis séricos mais elevados de diversos antioxidantes, atividade de SOD (superóxido dismutase), maior proteção contra oxidação de lipoproteínas e maior estabilidade genômica.
Papel da carne no câncer
Com relação aos efeitos cancerígenos dos derivados animais, em 2015 um grupo de especialistas da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, setor da OMS (Organização Mundial de Saúde) analisou mais de 800 artigos que relacionam o efeito carcinogênico do consumo de carne processada e não processada por seres humanos.
A partir dessa análise, eles publicaram um parecer científico no qual as carnes processadas (aquelas submetidas à salga, cura, fermentação, defumação e outros processos para realçar sabor ou melhorar a preparação) foram classificadas como grupo 1 de evidência, ou seja, classificadas como carcinogênicas (causadoras de câncer) para seres humanos.
Esse é o mesmo grupo onde encontram-se agentes já famosos, como amianto, tabaco, benzeno, plutônio e a fumaça de diesel. O relatório também mostra que a cada 50 gramas de carne processada consumida diariamente, o risco de câncer colorretal aumenta 18%.
A carne vermelha não processada (incluindo carne bovina, de vitela, porco, cordeiro, carneiro, cavalo ou cabra) foi classificada como “provavelmente cancerígena para humanos”, grupo do qual também fazem parte os esteróides anabolizantes e vários inseticidas e herbicidas (agrotóxicos).
O tipo de câncer mais associado nas evidências científicas é o colorretal (intestino grosso e reto). Esse tipo de câncer é hoje o 2º mais comum em mulheres e o 3º em homens, e está matando 862 mil pessoas por ano de acordo com dados de 2018 da OMS.
São diversos os componentes das carnes que se relacionam a este tipo de câncer, sendo os principais:
- Aminas heterocíclicas e hidrocarbonetos aromáticos policíclicos: formados quando a carne, tanto bovina, suína, peixe ou ave, é exposta à alta temperatura, como fritar ou grelhar diretamente em fogo aberto. Além do câncer colorretal, diversos estudos também relacionam essas substâncias a câncer de mama e de próstata.
- Nitrosaminas: podem ser produzidas diretamente nos alimentos, quando são preparados em fogo alto, como é o caso do bacon frito, ou surgir no nosso estômago a partir dos nitratos, conservantes usados no bacon, presunto, salame e em alguns queijos
- Ferro heme: medeia a formação de compostos nitrosos (NOC) e de produtos de oxidação de lipídios no trato digestivo de humanos e animais. As neoplasias de mama e próstata também estão associadas à sua ingestão.
E os outros produtos de origem animal?
Leite e câncer de próstata
O consumo de leite e seus derivados não passa despercebido quando se fala de associação com câncer, já tendo sido alvo de diversos estudos. Uma revisão sistemática e metanálise, publicada em 2015, demonstrou que o consumo desses produtos se associa ao câncer de próstata.
Os pesquisadores, no entanto, refutaram uma hipótese existente de que o cálcio era o agente cancerígeno e não outros fatores presentes no leite, pois a mesma associação com o cálcio não ocorreu na forma de suplementos.
Os autores apontaram que o aumento do risco de câncer de próstata foi de 7% para 400 g/dia de laticínios ingeridos, 3% para cada 200 g/dia de leite, 6% para 200 g/dia de leite magro e 9% para cada 50 g de queijo.
Já em 2016, outra metanálise de 11 estudos de coorte avaliou a relação do consumo de produtos lácteos com a mortalidade por câncer, e concluiu que a ingestão total desses produtos não tem impacto significativo no aumento de mortalidade por todos os tipos de câncer, mas a ingestão de leite integral em homens contribuiu de forma significativa para o risco elevado de mortalidade por câncer de próstata.
Em 2019, uma revisão da literatura sobre laticínios e seu impacto na promoção do câncer de próstata concluiu que é possível estabelecer uma relação entre o consumo de produtos lácteos e a iniciação ou progressão do câncer de próstata. Os autores concluíram que a ingestão de produtos lácteos deve ser reduzida ou minimizada na dieta dos homens.
Com relação aos estudos controlados, em 2005 foi publicado um estudo realizado em indivíduos com câncer de próstata, conduzido por Dean Ornish e colaboradores. Os pacientes recrutados se recusavam a realizar qualquer tratamento convencional, o que possibilitou randomizar os grupos sem o viés de uso de intervenções cirúrgicas, terapia de privação de andrógenos ou radioterapia.
Foram recrutados e randomizados 93 voluntários com PSA (antígeno prostático específico, um exame de diagnóstico de câncer) sérico entre 4 e 10 ng/mL e escala de câncer de Gleason menor do que 7 (o que classifica os tumores em grau médio e baixo) e acompanhados por um ano. Foram incluídos 44 indivíduos no grupo experimental e 49 no grupo controle.
O grupo experimental, além das mudanças de estilo de vida, utilizou uma dieta vegana com uma porção de tofu e 58 gramas de bebida proteica à base de soja e suplementação de 400 UI de vitamina E, 200 μg de selênio, 2 gramas de vitamina C e 3 gramas de óleo de peixe. A dieta desse grupo continha até 10% das quilocalorias como gordura e eram utilizados alimentos integrais, portanto era plant-based.
O grupo-controle foi orientado a seguir a dieta recomendada pelos profissionais de saúde que os atendiam. Do grupo experimental, nenhum dos pacientes foi submetido a tratamento, pois não houve aumento do PSA nem progressão da doença com base na avaliação por ressonância nuclear magnética, mas isso ocorreu com seis pacientes do grupo controle.
De forma significativa, o nível de PSA se reduziu 4% no grupo de intervenção e aumentou 6% no grupo-controle. O crescimento das células do câncer de próstata (LNCaP) foi significativamente inibido quase 8 vezes mais no grupo-controle do que no experimental (70% versus 9%, respectivamente).
Como a mudança do nível de PSA e do crescimento de células LNCaP se reduziu significativamente no grupo-controle, os autores concluíram que o estilo de vida proposto, que incluía alimentação plant-based, pode afetar a progressão do câncer de grau baixo em homens.
Estrogênio do leite de vaca e câncer de mama
Quanto ao câncer de mama, embora haja evidências ainda controversas em alguns estudos sobre o efeito do consumo de laticínios, no contexto do tratamento do câncer estrogênio-dependente, deve-se ter em mente alguns aspectos. Cerca de 60% a 70% do total de estrogênio derivado de animais presente na dieta humana vêm do consumo de leite e derivados.
As vacas produzem leite até os 220 dias de gestação, período em que o aumento estrogênico é 33 vezes acima do valor normal. O teor de estrogênio (estradiol) livre no leite varia de 1,0 a 2,4 pg/mL, e o estradiol sérico encontrado na mulher varia de 2,0 a 266 pg/mL, ou seja, o leite de vaca pode ter tanto estrogênio quanto o sangue de uma mulher em idade fértil.
Acontece que não se sabe ao certo quanto desse estrogênio é absorvido e ativo no organismo humano após o consumo, e do ponto de vista do câncer de mama estrogênio-dependente, procura-se justamente reduzir a quantidade de estrogênio circulante, seja por redução da produção ovariana, seja por inibição da aromatase (reduzindo a conversão de testosterona em estrogênio) ou seja por bloqueio do seu receptor, de forma que a orientação de consumo de leite deve ser restrita, até que haja mais estudos sobre a sua segurança.
No contexto do tratamento do câncer de mama, uma revisão crítica foi realizada e publicada em 2017, oferecendo diretrizes para essa condição. Para o consumo de produtos animais (carne, ovos, laticínios de baixo teor de gordura) a orientação é restringir seu consumo a uma ou duas vezes por semana.
Uma revisão narrativa publicada em 2018 sobre aconselhamento para mulheres em tratamento para câncer de mama afirma que as evidências sugerem seguir uma dieta plant-based para a saúde como um todo após o diagnóstico. Além disso, como 35% das mortes de mulheres com câncer de mama decorrem de doença cardiovascular, essa abordagem tem efeito protetor, tendo em vista a menor incidência de doenças cardiovasculares em indivíduos vegetarianos e veganos.
Em 2021, um estudo de caso-controle foi realizado com mulheres iranianas com câncer de mama e incluiu 350 mulheres com diagnóstico recente pareadas com 700 mulheres (grupo-controle) aparentemente saudáveis. Foi avaliada a associação de um índice geral da dieta baseada em vegetais, sendo um grupo classificado como seguidoras de dieta vegetariana saudável e outro não saudável.
Após o controle dos fatores confundidores, as participantes com o melhor padrão alimentar mostraram probabilidade 67% menor de câncer de mama do que as que estavam no pior padrão alimentar. As mulheres que tinham o pior padrão de escolha alimentar tinham 2,23 vezes mais probabilidade de ter câncer de mama. A maior aderência ao padrão saudável da dieta plant-based foi inversamente associado ao risco de câncer de mama, enquanto as com pior padrão alimentar mostraram o maior risco.
Considerações
Dados todos os argumentos expostos, existem fartas evidências da associação entre a prevenção do câncer e a dieta vegetariana, tanto pelos efeitos anticancerígenos dos alimentos vegetais, quanto pelas propriedades potencialmente pró-carcinogênicas das carnes e laticínios, alimentos estes evitados pelos vegetarianos e veganos.
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Dr. Paulo Victor Benício
Médico formado pela Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, com residência em Clínica Médica pelo Hospital Adventista Silvestre, pós-graduado em Nutrologia no Hospital Albert Einstein, pós-graduado em Avaliação Metabólica e Nutricional do Onívoro e do Vegetariano pelo Instituto Eric Slywitch, pós-graduado em Fitoterapia pela ABFIT, pós-graduando em Nutrição Vegetariana pelo Instituto Luciana Harfenist/Sociedade Vegetariana Brasileira(SVB), pós-graduando em Nutrição Esportiva e Estética, coordenador do Departamento de Medicina da Sociedade Vegetariana Brasileira(SVB), membro do Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida e membro titular da Associação dos Médicos Vegetarianos.
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